O Homem do Castelo Alto – Uma agonia que vale a pena sofrer

O Homem do Castelo Alto traz, ao mesmo tempo, espionagem, política e ficção científica

Quando Philip K. Dick, lá em 1962, imaginou um mundo onde o Eixo venceu a 2ª Guerra Mundial – e não os Aliados -, ele não tinha ideia do que essa possibilidade acarretaria. Como todo bom autor de ficção científica, ele partilhava o desejo insaciável pelo novo e desconhecido dentro da ciência. Schrödinger (aquele mesmo da história do gato vivo e morto), apenas 10 anos antes, havia teorizado sobre a possibilidade de múltiplas realidades simultâneas como uma extrapolação da mecânica quântica. Sobre essa teoria, até então considerada um delírio, Dick constrói, em O Homem do Castelo Alto, uma trama extremamente densa, complexa, com a qual o leitor (e o espectador, no caso de você estar acompanhando a série) acaba envolvido profundamente.

A realidade descrita por Dick nos ambienta em um mundo dividido em três partes: o Greater Nazi Reich, o império japonês e os territórios neutros. Os alemães e os japoneses, como potências hegemônicas triunfantes após a capitulação dos Aliados em 1945, decidem estabelecer seus domínios sobre os demais países conforme sua própria localização geográfica. Sendo assim, os japoneses acabam ficando com os territórios costeiros do Pacífico (China, parte da União Soviética, Oceania, parte da América do Sul e costa oeste dos Estados Unidos), enquanto os nazistas ficaram com quase toda a Europa, África, parte do Oriente Médio e costa leste das américas. Os demais territórios, chamados de zonas neutras, são partes do mundo desprezadas pelos dois grandes regimes, sejam por questões geográficas, como as Rochosas nos Estados Unidos ou os Andes na América do Sul, ou econômicas. Nestes territórios não há controle sobre quem vive neles, bem como sobre quaisquer “irregularidades”.

O foco principal de O Homem do Castelo Alto é como se deu a divisão dos Estados Unidos, com os Pacific States controlados pelos japoneses e o Greater American Nazi Reich, o qual toma todos os territórios a leste das Rochosas, ficando o meio-oeste como zona neutra, e toda a trama política que se desenrolaria por conta desta divisão. A todo momento há um movimento entre os nazistas para derrubar os japoneses e, assim, promover o Greater Nazi Reich pelo mundo todo. Em contra-partida, os japoneses também têm suas armas contra os alemães, o que torna o clima entre esses impérios bastante tenso. E como em todo bom jogo de xadrez, cada um dos lados tenta derrubar seu oponente, prevendo seus movimentos e, principalmente, limitando suas ações.

Uma trama política? Por que não?

Como parte dessa realidade concretizada em O Homem do Castelo Alto, a política é um dos elementos mais complexos da trama. Como o momento político mundial era extremamente delicado no mundo em 1962 graças à movimentação, promovida pela União Soviética, de mísseis nucleares nas águas caribenhas, com destino à Cuba, Dick incorpora esta tensão e a repassa à sua obra de maneira magistral. Nessa versão da “Guerra Fria”, Alemanha e Japão travam uma batalha velada, cheia de surpresas e reviravoltas. Sendo assim, não existem mocinhos nem bandidos, mas pessoas, grupos ou até mesmo um regime inteiro jogando conforme suas vontades. Mesmo a personagem Juliana Frink/Crain, que poderia ser considerada a “donzela na torre”, acaba sucumbindo à violência para poder sobreviver.

Nesse ambiente sombrio, onde você nunca sabe o que esperar, cada um dos regimes também tem que lidar com seus demônios internos. Com a possibilidade da eventual morte de Adolf Hitler, todos os possíveis sucessores começam a tramar uns contra os outros para alcançar o posto máximo de Reichführer. Além disso, as ambições de dominação global por parte dos alemães se intensificam a cada momento em que a morte de Hitler parece mais próxima. E, inclusive, sua morte é usada como pretexto para uma declaração de guerra contra os japoneses.

Por outro lado, os japoneses, tentando se precaver de um possível ataque alemão, começam uma campanha para fazer com que grandes homens do reich desertem ou espionem a Alemanha em seu favor. Avanços tecnológicos, como a bomba A, para a qual os japoneses não tinham tecnologia, são entregues a eles por um general alemão, o qual busca impedir o avanço nazista sobre os territórios japoneses. E nessa guerra de espionagem e contraespionagem, personagens de ambos os lados acabam desempenhando um papel crucial para o desfecho da história.

E, como em qualquer distopia despótica, os rebeldes, aqui chamados de Resistência, têm parte fundamental nessa história. Como esta não é uma história do “bem contra o mal”, ela se distancia, e muito, da obviedade. Os rebeldes não são heróis lutando pela liberdade. São traficantes, contrabandistas, falsários, párias ou, simplesmente, pessoas movidas por algo muito menos nobre: a vingança. Esperar heroísmo de um membro da Resistência é o mesmo que esperar empatia por parte dos nazistas descritos na obra. Isso fica evidente quando, por conta de atentados por parte dos rebeldes, estes não se preocupam com as represálias japonesas, as quais tiram a vida, sob ordem do Inspetor-Chefe Kido, de dez gaijins (não-japoneses) para cada kempei (soldado imperial japonês integrante da Kempeitai, a polícia militar do exército imperial) morto.

Ficção científica e política. Isso funciona?

A essa altura você deve estar se perguntando: como encaixar ficção científica em uma distopia despótica? Esse é o grande segredo de O Homem do Castelo Alto: conseguir unir em uma obra tão densa elementos aparentemente incompatíveis. Como é comum em obras de ficção científica, a ficção é quem domina o enredo, quase não deixando espaço para uma trama mais elaborada ou personagens mais profundos. Se fizermos uma análise, boa parte das obras do estilo, principalmente as que foram adaptadas para o cinema, trazem personagens rasos e histórias fracas e fáceis. Mas não é isso que você encontrará aqui.

O Homem do Castelo Alto lida com o conceito de multiverso, onde múltiplas realidades podem coexistir e se desenvolver de maneira completamente independente. Isso significa que a realidade descrita na história não é a única possível. Ao decorrer da trama, vamos descobrindo personagens que vivem ou viveram realidades diferentes e que acabam, por um acaso, cruzando o caminho uns dos outros. Esses personagens, os “viajantes”, têm a capacidade de viajar entre as realidades, adicionando elementos inesperados à trama principal. Essa parcela de ficção científica inserida no contexto político de O Homem no Castelo Alto faz desta uma obra obrigatória a todo e qualquer amante do estilo.

Mas, afinal, quem é o homem do castelo alto?

Elemento principal da história, o homem do castelo alto é, claro, um homem e, sim, ele existe. Na série, ele tem acesso a filmes que descrevem realidades diferentes da realidade em que a história se passa. Nesses filmes, os quais viram uma obsessão para Adolf Hitler, alguns personagens têm vislumbres de si mesmos. Eles podem ver-se em situações que poderiam representar seu futuro, por exemplo, mas que nunca deixam claro qual é a verdade por traz delas. Boa parte da trama de espionagem está em encontrar tais filmes, descobrir quem os distribui e o motivo por traz disso, e isso envolve tanto alemães quanto japoneses. No livro, ele é o autor da história que se desenrola dentro da história: O Gafanhoto Pesa. Nesse livro, ele descreve uma realidade completamente diferente daquela que norteia as vidas dos personagens, mostrando um mundo onde não há a opressão dos agentes do estado e onde todos são livres para serem eles mesmos.

A medida em que a história vai se desenrolando, vamos compreendendo os papéis de cada um dentro dela e, com isso, deixamos de acreditar em uma óbvia redenção deste ou daquele personagem. Isso significa que, por mais coerente que possa ser a mudança de um personagem ao longo da trama, ela poderá estar longe daquilo que imaginamos. Não há o vilão em redenção, nem o mártir de uma causa. E é isso que o homem no castelo alto quer nos mostrar.

O livro ou a série?

Sinceramente? Os dois! Tanto o livro quanto a série são empolgantes e fixam a nossa atenção. Não vou discutir se existem ou não diferenças entre os dois, se um é melhor ou não que o outro ou qualquer coisa assim. Se posso dar um conselho de amigo, é: leia o livro, assista à série ou faça os dois. Com certeza absoluta os dois têm o mesmo poder sobre a nossa mente.

Ah, e apesar dos rumores de que a Amazon Prime teria cancelado a série em sua quarta temporada, a verdade não é essa. Como O Homem no Castelo Alto é uma obra com começo, meio e fim, a série também seria construída assim, tendo seu fim previsto, desde o início, para a quarta temporada.

E, como disse no título deste artigo, O Homem do Castelo Alto é uma agonia que vale a pena sofrer.

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